sexta-feira, 1 de junho de 2012

CONSTRUÇÃO DE MÚLTIPLOS SENTIDOS NA COMPREENSÃO DA LEITURA

MAGALHÃES, Antonio Carlos Tomás Fialho. Uberaba: Oficina de Ensino e Projetos Educacionais, Agosto, 2007.

Como prática social, a leitura está associada ao conhecimento e à difusão de saberes e ideologias, parte integrante, portanto, da formação do universo cognitivo do ser humano. Por conseguinte, a passagem à condição de leitor nem sempre é um fato espontâneo e automático, uma vez que o ato de ler é uma prática que vem se significando de geração a geração. Em virtude desse fato, a compreensão de um texto e seu discurso é uma tarefa complexa em que o próprio objeto a ser analisado é profundo e repleto de significações. Aprender a desvendá-lo e criticá-lo é uma construção social e cultural contínua e permanente.

Temos notado, no entanto, que há um distanciamento entre o que os PCNs atribuem ao domínio da língua e do discurso – enquanto perspectiva relevante na formação social do leitor – e as práticas pedagógicas direcionadas à leitura e compreensão de textos na Educação Básica. Isso porque o ensino de Língua Materna, na grande maioria das escolas mineiras públicas e privadas, tem se fundamentado no ensino da gramática prescritiva (por meio de regras e nomenclaturas exaustivas) sem se preocupar em mediar ao aluno estratégias de produção de leitura que o insira efetivamente no mercado profissional ou em outras esferas sociais.

No cotidiano escolar, o sentido que se atribui a uma prática pedagógica é fruto de uma construção social, um empreendimento coletivo e interativo entre sujeitos que na dinâmica das relações interpessoais e sociais, historicamente construídas, elaboram estratégias a partir das quais os conhecimentos são analisados discursivamente, produzidos e veiculados em sala de aula. Compreendemos o espaço pedagógico como uma realidade que permite a interação entre educadores e alunos com o objetivo de analisar e produzir ciência, e o fazer pedagógico em movimento como uma prática discursiva que se configura segundo as concepções enunciativas de Mikhail Bakhtin (2003).

Nosso objeto de pesquisa é, pois, a avaliação em contextos escolares que se circunscreve no interior de um espaço discursivo (sala de aula), momento em que os alunos interagem com outros alunos e com o educador. Ao mesmo tempo propomos contribuir para o aprimoramento e expansão dos conhecimentos lingüísticos e discursivos dos discentes que integrarão os grupos de estudos durante os encontros para composição do material a ser analisado no presente estudo. Esses encontros se desenvolverão dentro da seguinte perspectiva didático-pedagógica: avaliação diagnóstica, interação pela linguagem e acompanhamento, voltados para avaliação formativa e reflexão dos processos educativos.

Dar sentido ao mundo é uma dinâmica interativa e discursiva que praticamos constantemente no cotidiano de nossas relações sociais. Nesse aspecto, o uso da linguagem constitui-se em práticas sociais gestoras de práticas discursivas que perpassam esse cotidiano. É inegável que a interação entre professor e aluno se faça pela articulação dialógica, no momento em que o educador produz sentidos por meio de um prática pedagógica interacionista, ao mediar e avaliar conhecimentos no contexto escolar.

Nesse caso, a produção de sentido é analisada, enquanto fenômeno sociolingüístico, em que se busca compreender tanto as práticas discursivas que perpassam o cotidiano, como a condição de produção discursiva. Em sala de aula, quando propomos avaliar o aluno, considerando a avaliação uma prática dialógica diária, procuramos analisar o discurso de um locutor-aluno que tem como interlocutores os demais colegas de equipe e o educador como facilitador de todo processo de interação.

E já dizíamos, em outro estudo, que “não se conhece o educando sem interagir com ele por intermédio do convívio e da articulação dialógica. A partir do momento em que se trabalha com diagnóstico e avaliação interativa, essa relação tende a ser permanente” (MAGALHÃES, 2003, p. 2). Se procurarmos compreender os sentidos que o aluno produz quando trabalhamos com o texto em sala de aula, passamos a focalizar a atenção no conhecimento de mundo, analisando as condições de produção de seu discurso. O aluno torna-se, então, um protagonista do processo educativo, de sua própria aprendizagem e da avaliação em contextos escolares.

Logo, é essa uma das estratégias centrais deste projeto: o educador, em processo interativo, aborda o tema com base em um texto proposto, podendo gerar práticas pedagógicas variadas, como forma de auxiliar o aluno a condicionar o seu discurso, deslocando, quando necessário a significação (releituras). Na medida em que o aluno desloca o discurso para outra temática, cabe ao professor reorganizar a dinâmica e voltar ao texto proposto de acordo com as necessidades da equipe. O que não sugerimos, porém, é que esse desvio se torne exaustivo, distanciando da proposta original, momento em que o educador sugere o aprofundamento do tema emergente em uma outra interação dialógica, em um outro cotidiano.

Diante disso, essa prática educativa nos remete, por sua vez, aos momentos de significações, de rupturas, de produção de sentidos quiçá adversos, isto é, corresponde aos momentos do uso da linguagem, nos quais convive a diversidade cultural dos alunos presentes em sala de aula. De acordo com Spink e Medrado (1999, p. 45) podemos definir práticas discursivas “como linguagem em ação, isto é, as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas.” Nessa linha de pensamento, nas avaliações em sala de aula, as práticas discursivas teriam como um dos elementos constitutivos os enunciados dos alunos, articulados dialogicamente. Nessa articulação tomamos o discurso como unidade básica de referência para o ensino de língua materna e demais ciências.

Entendemos a avaliação dialógica como linguagem em ação em que os sujeitos produzem sentidos e se posicionam ideologicamente. Uma dinâmica fundamentada, portanto, em enunciações orientadas por vozes que se constituem no interior de uma prática educativa. Para exemplificar, durante uma aula sustentada no diálogo entre os integrantes do processo de aprendizagem, os temas propostos, alvos de reflexões e críticas, podem ser projetados pelo aluno no professor por meio de seus anseios e dúvidas e o educador, em seu turno, projeta sentidos outros em direção aos integrantes do processo, na tentativa de construir coletivamente um conhecimento.

Nessa perspectiva, durante o desenrolar de minha graduação em Letras (2001-2005), propus à Universidade de Uberaba – em curso pré-universitário – uma abordagem experimental de avaliação dialógica na correção de textos escritos e na apreciação dos seminários apresentados em sala de aula. Somos da mesma opinião que não é objetivo dessa mediação dialógica que o professor traga as respostas prontas, mas que juntos – educador e educandos – caminhem na constituição do discurso didático-pedagógico e na constituição de um sujeito protagonista do processo de ensino.

A produção de sentidos, elaborada por sujeitos em interação coletiva, condiciona novos argumentos e novas posturas que se entrelaçam às vozes de outros interlocutores presentes no momento do diálogo. Vale dizer que em uma compreensão textual em que o professor dinamiza a leitura pela interação entre os protagonistas, as aprendizagens e as informações são múltiplas e os beneficiados são todos os presentes no momento da produção do discurso, inclusive o próprio educador.

Com base na premissa de que “a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana” (BAKHTIN, 2003, p. 248), supõe-se que, considerando a escola como uma esfera social, o diálogo seria uma constante na interação entre os mais variados agentes e integrantes do processo educativo. Entretanto, existe uma lacuna entre esse processo e as práticas pedagógicas instituídas pelos profissionais de ensino, que ainda pensam as ciências como regras e prescrições destinadas a formação de cidadãos aptos aos processos de seleção universitária: vestibular, processos seriados, dentre outros.

Considerando que a interação em sala de aula é um processo histórico e cultural que se efetua por meio de práticas discursivas, não se pode observar, pois, apenas a prevalência do quantitativo sobre o qualitativo no momento de uma avaliação. O domínio da compreensão da leitura se dá por meio da autoria dos discursos produzidos pelos alunos enquanto sujeitos inseridos em um contexto social. Buscamos essa postura nas concepções de Geraldi (2004, p. 41) segundo as quais a linguagem “mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, (...) é vista como um lugar de interação humana.” Sendo assim, chegamos à seguinte indagação: Como avaliar sujeitos do processo educativo, construindo um sentido mais profundo que envolve investigação processual e o conhecimento de experiências de um ser participativo em esferas sociais variadas?

Em nossas leituras, encontramos em Rojo (2003, p. 185) que: “(...) o papel do outro e da interação com o outro no processo de construção de práticas, discursos e concepções letradas, ficou, durante algum tempo, em segundo plano, na medida em que o foco do olhar construtivista inicial era o sujeito cognitivo.” Levantamos a hipótese de que, por muito tempo, o aluno apenas escutou a voz do professor que transmitia conteúdos e utilizava a avaliação como poder e instrumento para conter a tão discutida indisciplina. Nesse cenário, o diálogo em sala de aula fora relegado às conversas paralelas entre alunos que eram repreendidos pelo professor, autoridade única e irrefutável. Diante disso, a interação entre os sujeitos do processo educativo era limitada à apresentação de perguntas destinadas a sanar dúvidas de alunos, o que castrava todo um processo de articulação dialógica – argumentativo e crítico – necessário à formação social do leitor.

Diferente da concepção de Bakhtin (2003, p. 294), na qual “o locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva do outro”, a avaliação estanque dos conteúdos programáticos ainda é muito praticada em contextos escolares, mesmo considerando uma série de pesquisas e enfoques diferenciados disponíveis no mercado educacional. É grande o número de professores que, distanciando-se da legislação educacional brasileira, ainda institui uma avaliação puramente quantitativa. Essa disparidade ainda tem como aval a palavra do diretor e dos demais integrantes da equipe pedagógica que concebem o aluno como um ser que deve respeitar o professor e permanecer calado e quieto durante todo o período escolar. Em outras palavras, um indivíduo biológico, homogêneo cuja função na escola é receber e devolver informações por escrito.

Defendemos a idéia de que o domínio e a análise crítica das ciências e da língua materna não se reduzem a questões de múltipla-escolha, seja em simulados, concursos públicos, vestibulares. Nesse processo de múltipla-escolha, fica claro que a subjetividade do aprendiz não pode ser expressa, uma vez que a interação é limitada a alternativas, desprovidas de argumentação discursiva. Como conseqüência, embora algumas instituições tenham criado provas temáticas e contextualizadas, o avaliado fica sujeito às artimanhas do avaliador. Um processo que não agrega valores ideológicos dinâmicos e flexíveis, mas sim estanques e castradores da criatividade.

Com base no que foi exposto, é relevante, na educação brasileira, propor uma avaliação que alcance as fronteiras entre o ideológico e o histórico-cultural, permitindo ao aluno colocar sua subjetividade no momento da produção de sentidos. É justamente nessa perspectiva que uma avaliação dialógica se insere na reconquista do valor do conhecimento para transformação social e ao mesmo tempo propicie aos alunos uma inserção efetiva nos processos competitivos de seleção universitária e pública.

Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

GERALDI, J. Wanderley. (Org). O Texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 2004.

ROJO, Roxane. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular e projetos. In: ______ (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. Campinas: Mercado das Letras, 2001. p. 27-38.

SPINK, Mary Jane P.; MEDRADO, Benedito. Produção de sentidos no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In: ______ (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999. p. 41-61.

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